segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Crise de metodologia da ANEEL já era prevista!

by Ivo Pugnaloni 0 comments

Roberto D´Araújo escreveu esse artigo em 25 de agosto último.
Parece que o ex-superintendente de planejamento de Furnas estava adivinhando o que vinha por aí.

Agora que o TCU descobriu que a metodologia da ANEEL para cálculo de reajustes tarifários apresenta vícios insanáveis, que favorecem às distribuidoras de todo o país e que, só em Pernambuco os consumidores foram “tungados” em R$ 1,8 bilhões, torna-se obrigatória a leitura desse artigo, no qual Roberto profetizava “que uma crise de metodologia estava vindo por aí...”

Um pré-sal desprezado no setor elétrico.

Acirrou-se o debate sobre o destino do “tesouro submerso” do pré-sal, até agora desconhecido. Ótimo que o estado brasileiro pretenda contar com parte desses abundantes recursos para minorar o vergonhoso quadro de exclusão e de desigualdade do povo brasileiro. Afinal, somos a décima economia mundial com coeficiente de Gini comparável às piores economias subdesenvolvidas.



Mas, que coisa estranha! Como é que outras riquezas são desprezadas? Estou apenas fazendo uma provocativa comparação desse tesouro submerso com as rendas “oclusas” do setor elétrico brasileiro que, apesar de evidentes, foram sutilmente descartadas sob o complicado e adaptado modelo mercantil. Nesse caso, não é preciso perfurar nada. A fortuna está disponível acima do nível do mar.

Ora, segundo dados da FAO[1], o Brasil tem 18% dos recursos hídricos do planeta. Mesmo descontando-se os rios que não nascem no território nacional, tais como o Amazonas e o Madeira, o Brasil é o líder mundial nessa fortuna. Tendo rios de longa extensão, clima tropical e ainda contando com diversidade hidrológica, pode-se pelo menos conjeturar que há ai uma enorme vantagem que só depende de sua gestão.

Desconfiem de equações muito complicadas e deselegantes. Elas não descrevem a realidade. Geralmente, querem distorcê-la. Os cientistas estão cada vez mais convencidos de que beleza é fundamental. Matemáticos e físicos acreditam que sentenças elegantes como E = mc2 podem ser a diferença entre o certo e o errado. Pois, quem já se deparou com as equações[2] que regem o sistema mercantil brasileiro pode perceber como ficaram complicados e feios nossos elétrons[3].

Tudo porque, apesar de totalmente distinto, ainda insistimos em aplicar o (agora velho) modelo inglês ao nosso sistema. E o que é mais intrigante, é que a metodologia desenvolvida no período estatal entrou de gaiata na história e tem sofrido críticas de todos os lados. Também, pudera. O estigmatizado NEWAVE, um software monopolístico de operação, por incrível que pareça, passou a ser a peça chave do emaranhado modelo de mercado brasileiro. Um inacreditável mimetismo.

Se aplicada ao sistema brasileiro, a concorrência real por energia física resultaria num desastre. Por isso, nosso sistema “competitivo” é um mercado virtual. Por isso, um operador atua de forma monopolista independente da questão comercial. Entretanto, até essa independência está cada vez mais ameaçada porque é, simplesmente, uma hipótese frágil.

A bizarrice é evidente quando se examina as equações que regem o sistema mercantil, pois elas dependem e muito da operação. Bastaria dizer que a “carga crítica”, a soma de todas as energias asseguradas dos agentes, é determinada por uma simulação[4] da operação. As asseguradas individuais são certificados dados por um “cartório”, sob fórmulas de complexidade que fariam inveja à física quântica. Dependem de uma operação imaginada por um horizonte futuro de 15 anos. Tudo isso só para dizer quanto cada usina pode vender!

Qualquer hipótese assumida que não corresponda à realidade posterior, é um risco, pois o certificado é dado a priori[1]. E o mais irônico é que a pedra fundamental disso tudo é o custo marginal de operação (CMO), que, como o nome diz, nunca foi preço! Na metodologia monopolística, era um mero custo de oportunidade, um valor para a água, mas, talvez reflexo de um colonialismo tardio, foi alçado a “spot price”.

Mas, já que é assim, vamos filosofar sobre essa idéia. Quando é que 1 metro cúbico de água reservada em nossos reservatórios vale zero ou muito pouco energeticamente? Ora, quando esse metro cúbico vai ser jogado fora sem gerar 1 kWh sequer. Qualquer outra situação nos coloca sob o dilema do valor. Esse mesmo metro cúbico, se não for vertido, pode valer muito se vai diminuir um racionamento (custo do déficit). E quanto custa o déficit? Alguém conhece pergunta mais difícil? Mas, apesar da dificuldade e subjetividade da avaliação do custo do déficit, o modelo mercantil brasileiro sabe quanto custa! Vale exatamente R$ 2430/MWh! E tem mais! Sabe também qual é a taxa de desconto do futuro! Não seria tão arriscado se fosse usado apenas para operar o sistema, mas, com esses precisos e indiscutíveis valores, mais as configurações futuras, o “cartório” sai emitindo certificados comerciais! E assim é o modelo mercantil do setor elétrico brasileiro.

Indo adiante, vamos admitir que toda essa capacidade de lidar com valores subjetivos e prever o futuro esteja absolutamente correta. Quando é que o nosso sistema está “em equilíbrio”, ou seja, sem a necessidade de uma nova usina? Quando o custo marginal de operação médio (para todas as hidrologias) equivale ao custo marginal de expansão (CME), o custo unitário de uma nova usina. Quando o CMO > CME, está rompida a hipótese básica que determinou a energia assegurada do sistema e, portanto, alguém está consumindo energia acima de seu certificado. Pois, hoje, a situação é exatamente essa! O CMO médio é quase o dobro do CME[2]!

Mas, o que ocorre com a distribuição de probabilidades do CMO na situação onde CMO=CME? Bem, a média é igual ao CME, mas a “moda”, o valor mais provável, é aproximadamente 1/3 do CME. Culpa exclusiva da hidrologia brasileira que, sob tal critério de garantia, oferece mais água do que a necessária. Se, a partir desse equilíbrio perfeito, alguém passa a consumir mais do que seu quinhão, ele fica exposto ao mercado “spot”, o que em qualquer sistema de base térmica é muito perigoso. Mas aqui, como o modelo resolveu usar um custo como preço, acontece o contrário. O MWh extra vai custar muito barato, pois, como explicado, em situação próxima ao equilíbrio, o valor mais provável do CMO é bem mais baixo do que qualquer contrato. Ou seja, a estrutura do modelo é contraditória, pois o custo de operação transfigurado de spot é incentivador ao descontrato e, por conseqüência, ao desequilíbrio.

Mas, qual a diferença física de um MWh que vale, digamos, R$ 18 e um que vale, digamos, R$ 400? Nenhuma! Todos dois acendem várias lâmpadas! E porque o sistema brasileiro montou um modelo onde alguns estão aptos a pagar R$ 18 enquanto a grande maioria paga R$ 400? Como pode um mesmo “produto”, fabricado do mesmo jeito pelas mesmas máquinas ter preços tão diferentes? Será que isso ocorre com um barril de petróleo?

Quem consultar os relatórios anuais da CCEE verá que, por mais de 4 anos, cerca de 3 TWh mensais, cerca de 8% da carga total, foram “liquidados” por ninharias bem menores do que R$ 20/MWh. Ora, R$ 70/MWh ainda seria uma pechincha, pois é metade do preço das energias nova dos leilões. Portanto, é só fazer as contas para descobrir que um “pré-sal” de R$ 150 milhões/mês foi desprezado sob o bizarro manto do modelo mercantil brasileiro. 

E não é só isso. Grandes consumidores, térmicas e comercializadores[1], que podem atuar nesse mercado virtual, usaram práticas predatórias, fazendo contratos de curto prazo a posteriori! Enquanto os consumidores cativos pagaram uma tarifa compatível com a expansão, esse grupo “navegou” na distorção inerente ao modelo. Esvaziaram reservatórios e, sob a elevação súbita do preço de curto prazo, chegam a pedir a mudanças na operação e até a intervenção do governo![2] O mercado livre só quer ser livre enquanto há vantagens. Mas, apesar de tudo, não se pode culpá-los. Toda essa confusão é causada pela resistência em admitir que o sistema interligado brasileiro é monopólio natural e jamais deveria se tentar assemelhá-lo ao sistema inglês.

É evidente que seria outra a situação sob um arranjo que respeitasse o simples fato de que, as turbinas, os geradores, as subestações e até as barragens pode ser privadas, mas a água e a riqueza que vem dela, a energia, são públicas. O valor negociado no mercado seria a potência, um dado real, escrito nas placas das usinas e não uma energia “assegurada” num sistema cuja característica é a impossível individualização. Nesse sistema, a renda dos agentes seria constante, independente da hidrologia e os gastos operacionais variáveis seriam cobertos pelo consumidor. Quem já viu um gráfico da distribuição da energia natural comparada ao valor da parcela assegurada hidráulica, sabe que, em anos úmidos, esse sistema geraria abundantes recursos, pois o custo operacional é baixo (pouca geração térmica). Apropriados coletivamente, poderiam ser usados para cobrir gastos de anos secos e ainda sobraria. Tudo se passa com se houvesse um “leasing” das usinas, aproximando mais a modelagem comercial do mundo físico.

Mas, nesse ponto nos deparamos com a síndrome de rejeição absoluta ao estado que assola a elite brasileira. Para ter essa vantagem, seria preciso adotar o modelo de comprador único, o que causaria arrepios aos adoradores do mercado. Só de imaginar que essa instituição poderia ser uma empresa estatal, faz a síndrome ficar ainda mais aguda. Se fosse absolutamente impossível tal solução, uma instituição ao estilo do ONS poderia fazê-lo. Aliás, já faz para a transmissão.

Enfim, o que parece estranho é que estejamos alheios aos defeitos estruturais do modelo mercantil como se ele fosse uma verdade absoluta. Não é! É só um conjunto de equações que tenta separar o inseparável, adotar hipóteses arriscadas, usar custo como preço, repartir funções muito semelhantes, utilizar uma metodologia de operação como fiel da balança comercial, gerando regras que têm tudo para ser instáveis. Posso estar equivocado, mas tenho a impressão que estamos à beira de uma grande crise metodológica. Com alguns anos de atraso, o monopólio natural vai mandando a conta das adaptações.

Roberto Pereira d’Araujo
25/08/2008

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Ivo Augusto de Abreu Pugnaloni
Engenheiro eletricista, ex-diretor da COPEL, atual diretor da ENERCONS Consultoria em Energia Ltda.
ivo@enercons.com.br

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